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Billet de blog 16 septembre 2015

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Eu sou racista e míope.

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Ce blog est personnel, la rédaction n’est pas à l’origine de ses contenus.

Eu sou míope. Quer dizer que quando olho sem óculos eu vejo embaçado. Vejo pessoas, mas não consigo distinguir claramente os rostos. Não consigo ler as placas, parece que estou na China, tentando decifrar códigos de uma língua incógnita.

Coloco os meus óculos e bim! Choque direto e imediato. Consigo reconhecer as pessoas, ler as placas. Ultimamente estou até pensando em operar, porque hoje dá para operar. Parece que é rapidinho e já o dia seguinte está tudo resolvido. Uma beleza.

Sou racista também. Achava que não, mas sou, ou talvez fiquei. E foi igual à miopia, eu não sabia. 

Eu descobri que eu era míope quando um professor meu notou que eu estava entrefechando meus olhos para enxergar. Ele me avisou, fiz os exames e pronto: eu estava míope. Que merda, eu nem imaginava. Daqui em diante eu ia ter que aguentar óculos. Eu me lembro que quando ele me falou, fiquei meio bravo.'' Hein? Do que você está falando? Estou vendo perfeitamente!"

É que eu não fui sempre míope. Quando nasci, a minha visão era perfeita. Fazia os exames até que regularmente porque eu queria ser piloto de avião. Até os meus 18 anos, sempre tive 10 nos dois olhos. E, por causa dos estudos, das leituras noturnas, a minha visão foi baixando, imperceptivelmente, mas foi baixando. E fui ficando míope.

O racismo tem um quê de parecido. Não nasci racista. Até me lembro de mim criança perguntando o que era racismo  para minha mãe e depois perguntando porque as pessoas não gostavam dos negros. Não entendia. Quando maior, fiquei lendo bastante e, entre outras coisas, lia reportagens ou estudos sobre o racismo. Para me tornar um tal de "consciente".

As leituras foram sempre os meus exames periódicos. Eu leio, logo estou informado e continuo alerto, "consciente" e assim me preservo de ser racista.

Porem, me ocorreu, um susto. Percebi que eu tinha sido contaminado. Não senti nada, não me dei conta, não imaginava. Assim como eu fui ficando míope, eu fui ficando racista. Sem perceber que a minha visão tinha sido alterada.

O susto aconteceu quando vi uma mulher com um carrinho de bebê. A cena poderia ter sido essa e para dizer a verdade a cena foi simplesmente essa. Só que eu vi mais. A mulher era negra e o bebê branco. Poderia parar ali, mas claro que eu vi ainda mais.

E logo me irritei, porque essa abundancia de babas me irrita. E detrás dessa minha irritação veio o susto. Quem me disse que essa mulher era baba? Ela não estava de uniforme.

Pensei "E se fosse o contrário?" Uma criança negra com uma mulher branca. Ai estava, a verdade crua do meu racismo. Eu ia certamente imaginar que fosse uma criança adotada ou que o marido era negro. Pois, as mulheres brancas adotam as crianças negras ou até tem, mas as mulheres negras criam as filhos dos brancos. Padrão predeterminado, óbvio da nossa sociedade.

Eu tinha sido contaminado por essa doença sem me dar conta, nada, zero. Foi simples assim. Nem vi por onde entrou, mas o fato é que estava dentro de mim.

Daqui em diante, vou ter que fazer o contrário do tratamento da miopia: vou ter que tirar os óculos. Esses óculos que a sociedade constrói, dia após dia, para orientar, poluir e restringir a nossa visão. E o mais dramático é que não há cirurgia para isso, trata-se de uma doença ocular crônica, um fungo que fica ali, se alimentando no lixão da nossa sociedade e que no calor do nosso corpo fica crescendo, se multiplicando. E não é legal ficar tratando isso, porque dá uma raiva descobrir essas coisas, mas depois a gente enxerga bem melhor. Fiquei com raiva do meu professor, mas depois eu consegui ler à noite sem dores de cabeça, graças aos meus óculos.

Sobra um medo, ou um desafio: quantas outras coisas horrendas foram construídas em mim que eu ainda não descobri?

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