Falar de racismo no Brasil é no mínimo complicado. O mito do "país para todos", "aqui, todo mundo é simpático"...
"No seu país, na França, vocês são racista, muito racistas".
Sim, somos, mas pelo menos falamos bastante disso e mesmo que ultimamente a situações não seja das melhores eu guardo uma esperança a pesar de tudo.
"De qualquer maneira, para você aqui é tranquilo, você é europeu". Pronto, tudo está dito. Sou europeu.
Nesta frase, dita por um branco brasileiro, se esconde uma dupla hipocrisia.
A primeira, e que alias implicitamente admite que "sim, há racismo no brasil", é que eu faço parte dos responsáveis. A título pessoal, eu não vejo bem o que eu tenho a ver com isso. Pois a minha família é bretã, e desta família, fui o primeiro a pisar neste pais. Eu não sou igenuo, sei bem a responsabilidade histórica da Europa na construção do modelo da escravidão no Brasil e não eximo ela de nada, mas há de olhar hoje quem é que de fato mantem e perpetua essa situação de discriminação e de racismo no Brasil, é disto que eu quero tentar falar aqui a pesar da minha posição de "opressor" predefinida como europeu.
Mais do que a minha própria culpabilidade ou que da culpabilidade da França (que mereceria debate, mas não é o assunto que eu me proponho a abordar aqui), é interessante notar que essa designação dos culpados é bem confortável para os brancos brasileiros.
Quando se fala em racismo, a culpa é dos europeus. Só que os europeus que são responsáveis, são aqueles que vieram "ontem" e aqueles que reproduzem o racismo quotidiano no Brasil não são os portugueses, os espanhóis ou sei-lá o quê, são os brasileiros brancos bem daqui, do Brasil, que perpetuam as discriminações e os seus privilégios até hoje.
Essa diferenciação dos europeus é muito cômoda, pois ela é variável. Quando se trata de se valorizar, quase qualquer Paulista vai explicar para você que ele é descendente de italiano, de português ou de francês. Obviamente, quase todos tem sangue negro, índio, mas nesse caso eles são antes de tudo europeus ou quase europeus, porque parece mais "chique" como se diz aqui.
Ao contrário, quando se trata dos assuntos que incomodam, como o racismo. Opa, são brasileiros, são "latinos". Clic, clac agora estão na posição de inferiores, de "terceiro-mundistas", de oprimidos. Então, como se poderia acusar eles de racismo? Os opressores, somos "nós", os europeus.
Quantas vezes eu já escutei: "mas você não pode entender, nós somos "latinos", sempre será pior para a gente. Mesmo para um europeu pobre a situação será melhor que a nossa".
É aí que a gente chega na dupla hipocrisia, além de se livrar da responsabilidade do racismo, ou da responsabilidade de falar dele, eles se posicionam em vítimas, em oprimidos.
Mas do que estamos falando? Para a classe alta, geralmente branca no Brasil, estamos bem longe dos "latinos" como os imaginamos, ou como eles se imaginam dizendo isso. Eles possuem um nível de vida que muito poucos franceses nunca poderão sequer sonhar em ter. Têm apartamentos enormes, vários carros (enormes em geral), faxineiras, cada coisa reservada às mais altas esferas na França. Aqui é a normalidade para a classe branca alta e média alta. Então claramente eles não estão numa situação pior que os pobres da Europa. Eles têm um nível de vida digno de uma pequena aristocracia que tem seus guardas, suas faxineiras, seus "valetes" que estacionam seus carros e assim por diante.
A classe alta e média alta é favorecida, extremamente favorecida. O fato de se designar como "latinos", num debate como o racismo só permite para eles de se livrar de qualquer responsabilidade e de continuar, finalmente, com a consciência limpa e tranquila.
O fato é que eles são brancos e que o racismo é uma realidade cruel para a metade dos brasileiros. Os brancos daqui vão ter que entender que eles fazem parte dessa sociedade, que eles fazem essa sociedade com os negros, os índios, os japoneses....
Paradoxalmente, para resolver o problema do racismo no Brasil, ou pelo menos aborda-lo, é talvez um pouco de orgulho que precisam os brancos daqui. Orgulho de ser brasileiro, de ser parte dessa mistura toda, com os bons lados, mas também com os ruins. Para poder começar a se interrogar sobre a sua sociedade, sobre a herança difícil da escravidão que pesa sobre os negros, mas também sobre os brancos afinal de contas. Para que finalmente uns escutam aos outros, nas suas complexidades, feridas, frustrações e sensibilidades.
No 12 de maio passado, uma brecha finalmente se abriu e o diálogo começou a se instaurar. Eliane Brum escreveu uma linda crônica sobre o debate que aconteceu.
A discussão entre uns e outros foi muito interessante, as vezes difícil, mas sobretudo de uma linda humanidade.
A traves da minha experiência de europeu morando no Brasil, o relato dessas frases que eu pude ouvir várias vezes me parece interessante na compreensão da visão que os brancos brasileiros têm deles mesmo. É obvio que não se trata de generalizar, porém, esses poucos exemplos colocam uma luz sobre um pensamento que muitos desta classe favorecida têm e que, ao meu ver, pode explicar algumas dificuldades ao estabelecimento de um debate sereno sobre o racismo.
Os brancos no Brasil, antes de ser descendentes de europeus são brasileiros e fazem, com os "outros", a sociedade brasileira tal como ela é hoje. Essa afirmação é necessária para que uma imperativa responsabilização se faça e que, enfim, um diálogo construtivo se instaure.